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Monólogo Sobre Rodas


Votar: direito ou dever?

«Se esta juventude fosse como a de outros tempos aí é que via como era a vida. Ai se isto fosse como d'antes. Com a idade deles já eu ia para a tropa e depois era casar; agora isto está perdido.» «Pois é, vizinho.»

Próxima paragem, Devesas. Olhos colados em ecrãs. Ouvidos ocupados com música vinda diretamente dos auscultadores. Sorrisos escondidos. Expressões tristes. "Mais um dia que passou", parece que gritam os sujeitos desentusiasmadamente em silêncios profundos, em olhares vazios. O rapaz do canto ouve música e sorri enquanto ganha o sabor das palavras na boca. A rapariga da minha frente olha para tudo e para nada, talvez com preocupação de não chegar a casa já com o sol a espreitar.

Próxima paragem, Espinho. Tudo continua igual. O treme-treme do comboio, o balanço que aproveita o nadinha do nosso cansaço e que nos dá vontade de fechar os olhos por uns segundos... Fecha. «Menino, o seu bilhete, por favor.» Okay, é melhor não adormecer. Estranhos colocam-se frente a frente, prontos para o início do jogo, esperando não ter momentos estranhos e trocas de olhares constrangedoras. A regra é simples: olhar para todos os lados menos para alguém; olhar para o vazio entupido do interior da carruagem sem que pareçamos lunáticos. Olhar através do reflexo dos vidros é batota.

Próxima paragem, Estarreja. O velhote encurvado sai porta fora juntamente com os seus compinchas. Nos mesmos bancos sentam- -se jovens que nem foram ao Dia da Defesa Nacional nem nunca devem ter segurado numa arma. (Será que sabem o que é a tropa?, o que acharia o homenzinho da substituição de armas debaixo dos braços por livros?) O barulho das vozes começam a sobrepor-se ao regular barulho das rodas na linha. De repente, escuridão. Entrámos num túnel, podia ser; mas é apenas o anoitecer que envolveu as carruagens.

Próxima paragem, Aveiro. Metade do conteúdo do paralelepípedo metálico sai porta fora. Senta-se uma senhora dos seus cinquenta anos com expressão de cansada na cara a um canto escondido do repartimento. Dali a pouco, com um livro na mão, já está noutro sítio, noutro comboio, noutra realidade. Os cantos dos lábios começam a elevar-se. (Terá sido, finalmente, assassinado o terrível vilão da história? Ou os sentimentos das personagens principais terão falado alto e bom som de uma vez por todas?) Os olhares para o exterior prolongam-se. O vislumbramento do nada, do vácuo. Mais um livro é aberto. «No dia seguinte ninguém morreu.» Só um um génio para escrever tal mote. Mas até a morte deve ter querido andar de comboio nalgum dia.

Próxima paragem, Mealhada. Um silêncio abrupto cai barulhento. O rolar, o contacto de roda- -linha é o único som em toda a atmosfera. Cheiro a café perfura o espaço. O cansaço sobrepôs-se. Venceu esta batalha. E o aroma amargo faz prevalecer tanto quem bebe como quem sente o cheiro torrado e intenso. As luzes passam. Silhuetas desenham-se. Os vidros começam a ficar húmidos e ninguém tem coragem ou descaramento de lá escrever o seu nome, como outrora o fez. «Já vi o seu bilhete?» Um telemóvel toca. A voz percorre todo o ambiente. Transpira cansaço, a vitória de mais um dia cumprido. «Também te amo.»

Próxima paragem Coimbra-B. Porque olha para mim assim, senhora? Como parece saber que estou a escrever sobre si e sobre todos os outros? Pare de sorrir para mim. Está bem, fazemos assim, eu paro de escrever e vossemecê para de olhar. Feito.


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