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O Dia D


Votar: direito ou dever?

Não, não estou a falar do Desembarque na Normandia. Não estou a falar da bravura dos soldados Aliados. Não ouso fazer comparações incomparáveis, mas também não me refiro ao dia 6 de junho de 1944. Estou a falar do 10 de julho de 2016. Chamo-lhe o “Dia D” porque foi o dia do Desporto nacional. O dia em que as cores nacionais invadiram o continente europeu, o dia em que desportistas disseram “é hoje” e num esforço quase sincronizado conquistaram a Europa e os corações daqueles adeptos ávidos do desporto que, como eu, vibram quando as palavras “sucesso” e “português” estão na mesma expressão. O dia começou com os olhos virados para Amesterdão. Sara Moreira terminou a meia-maratona em força máxima. Cortou a meta de olhos fechados. Quando os abriu era campeã da Europa. Abraçada pela bandeira nacional vê, na posição de bronze, a chegada de Jéssica Augusto, aos saltos e de sorriso esboçado no rosto. Os saltos da atleta fizeram a alegria dos espetadores que assistiam em casa. “A Portuguesa” soou em Amesterdão, com duas atletas lusas a partilhar o pódio. Sara de ouro e Jéssica de bronze, mas Jéssica Augusto seria de ouro, enquanto Sara Moreira duplicaria o ouro. As atletas, com os esforços conjugados de Dulce Félix (12.), Marisa Barros (46.) e Vanessa Fernandes (60.) partilharam o pódio coletivo de campeãs europeias, na meia-maratona. Seria esta conquista coletiva presságio daquela que viria mais tarde? 16:30 e já estava nos Aliados. Uma loucura, visto estar imenso calor e o jogo ser apenas às 20:00. Felizmente, não era o único louco na avenida. Espalhados pelos quatro ecrãs estava um mar de adeptos da bola, com toalhas estendidas no chão, cachecóis ao pescoço, bandeiras pintadas no rosto e cornetas estridentes. Não quis ficar atrás, adornei o rosto com as cores nacionais, coloquei uma pequena bandeira no braço direito, outra, maior, atada na cabeça e, para finalizar, cachecol nos ombros. Estava pronto para a guerra, que não seria facilmente ganha. Mas eu acreditava. Aos poucos, os portuenses convergiam para os Aliados, agora convertidos num autêntico festival de verão. O reportório era vasto e variado. A playlist ia desde os anos 90 até 2016. Até Nelly Furtado tocou, com a música oficial daquele Europeu onde o sonho foi perdido na final. Era pequeno, mas ainda me recordo. De bandeira nos dentes e lágrimas nos olhos. Fiquei desolado porque queria que Portugal vencesse. Queria ver uma taça nossa. Trouxe essa bandeira na pasta, 12 anos depois. Hoje queria tirá-la da mochila, no final da partida, e poder faze-la esvoaçar ao som dos cânticos que imortalizavam a vitória. Mas seria mais logo. De telemóvel na mão, ia acompanhando o Europeu de Atletismo. Tsanko Arnoudov, no lançamento do peso, lançou mais longe e subiu para o bronze. E se de lançamentos longínquos se fazem idas ao pódio, Patrícia Mamona saltou mais longe do que qualquer portuguesa. Viu a vitória a 14,58 metros de distância e agarrou-a. A televisão capta imagens que a memória retém. A surpresa de Patrícia, ao saber o resultado do salto que a catapultou para primeiro foi uma delas. Novamente, os saltos e a euforia eram sinónimos da vitória. E mais uma vez, “A Portuguesa” ecoou pelos Países Baixos. A seleção nacional de futebol ia a caminho do Stade de France, em Paris. No Porto, o ecrã gigante à minha frente acompanhava a cobertura mediática em torno deste evento desportivo. O autocarro português era escoltado por motards, quase todos emigrantes portugueses a residir em França. Não se pouparam a esforços para estar com a seleção até ao momento do jogo, não se pouparam a esforços para irmos todos juntos até à final que nos aguardava em Paris, não se pouparam a esforços para comprovar que éramos 11 milhões, dentro e fora do campo. Rui Costa pedalou para o topo da tabela na nona etapa. Terminou em segundo e mostrou que vai realizar o Tour de France com a mesma convicção com que os desportistas naquele autocarro fizeram o tour até Saint-Dennis. A música pimba é alternada com Xutos e Pontapés, música de discoteca e até brasileira, aqui na nossa “alegre casinha”, nos Aliados. A minha expetativa já não pode ser contida. Os restantes atletas abriram caminho para o final perfeito, só faltam (pelo menos) 90 minutos. Achava eu que seriam só 90. O 11 inicial surge no ecrã, as cornetas soam, os adeptos deliram. Este é o meu estádio para ver a final. Não escondo o gosto que tenho pelo caráter popular reunido na Baixa do Porto para ver a bola. A cerimónia da final do Euro antecede o jogo das nossas vidas. Uma última vez, pela terceira. “A Portuguesa” volta a tocar, em todo o seu esplendor. Em sintonia perfeita, o hino nacional é cantado pelas pessoas aqui reunidas. A sincronia foi possível devido aos ensaios, nos jogos anteriores, e o espetáculo foi dado, na final, tendo como maestros os 11 que em campo também cantavam. Acredito que este coro se tenha propagado até Paris, para guiar a seleção “à vitória”. É dado o pontapé de saída. Começa a festa do futebol, começa a final. Aos 8 minutos, o capitão cai e parece cair o ânimo. Levanta-se a revolta pelo jogador que deferiu o golpe que tirou o capitão de cena, mas Ronaldo não desiste. Regressa ao campo e os Aliados assobiam, gritam e batem palmas. Mas a dor impede-o de prosseguir. Abandona o campo, aos 24 minutos, numa maca e, novamente, as palmas nos Aliados louvam o esforço do capitão da equipa das quinas. Como acontece com os bocejos, as lágrimas de Cristiano Ronaldo desencadearam outras. Olho em redor e vejo as lágrimas de quem vê a raiva e a tristeza do jogador que não pode continuar a jogar e que não quer desistir. E, felizmente, não o fez. Quaresma entrou em campo e avenida explodiu. O camisola 20 transporta a esperança portuguesa novamente para o campo. Entre palavrões e gestos nervosos, o jogo avança, sem golos. Rui Patrício era o protagonista que impedia as investidas francesas que nos causavam ataques de pânico, seguidos de alívio. Ronaldo mostrava que não precisava da braçadeira de capitão – agora no braço de Nani – para comandar. De joelho elástico, mancava enquanto gritava, mas não se sentava. Não estava a jogar a partida, mas estava a vivê-la, do lado de fora, como eu e os restantes adeptos. A sua frustração era a mesma que a nossa. Ver os lances perigosos e não poder estar lá dentro para os impedir. Ver o Sissoko avançar e não poder estar no campo para o impedir. Felizmente, houve sempre alguém que impediu o seu esforço napoleónico de conquistar a baliza portuguesa. Os 90 minutos já há muito terminaram e estamos no prolongamento. Ainda sem golos, Fernando Santos coloca Éder em campo, para desânimo de muitos, inclusive o meu. Confesso, não concordei com a entrada do jogador, mas o Éder não precisou da minha aprovação, nem da de ninguém. Apenas precisou de uma oportunidade. Não precisou de engendrar a jogada ideal. Viu a oportunidade surgir e correu para ela, ou melhor, correu com ela nos pés. O remate foi certeiro e abalou a formação e o sonho francês. Não consegui ver o ambiente na bancada do estádio, porque no estádio da avenida todos se colocaram em pé. Novamente em sincronia, “GOLO” é gritado e ecoa pela cidade. Arrisco dizer que a euforia daquele remate e os berros que se seguiram deram a conhecer até aos que estavam na periferia da cidade e que não assistiam ao jogo que Portugal estava na frente do marcador. E tinha o campeonato à sua frente. Acreditava na vitória desde o momento em que saí de casa, com destino aos Aliados. Estava ciente do desafio que seria, mas acreditava que era possível. Aquele golo comprovou-me que era possível e que estava ao alcance, só bastava acreditar e sofrer mais um pouco. O relógio não parava, mas parecia não andar, parecia estar propositadamente mais lento, para prolongar o nosso desespero. Já roía as unhas, já apertava o cachecol com os dentes – velhos hábitos de sofredor – já me agarrava à calçada sem sucesso. Até dava indicações aos jogadores – em vão – que me pareciam ser as mais corretas para impedir que a bola entrasse na nossa baliza ou para fazer com que entrasse novamente na deles. Os minutos (de compensação) finais e nos Aliados os adeptos estavam entre manter a calma, porque só termina quando o apito final for dado, e começar a festa, ou melhor, prolongar a festa que o golo de Éder começou. Rui Patrício deve ter visto os segundos finais desvanecer do relógio, mas não chutou a bola. Talvez estivesse incrédulo. Acabou finalmente. Finalmente somos nós, os campeões. Não sei, mas sei que demorou a colocar a bola novamente em jogo. Quando o fez, já algumas pessoas insultavam o árbitro e denominavam a mãe dele de meretriz, por não ter apitado de imediato. Admito que fiz parte desse grupo. O árbitro dá o apito final e novamente os saltos. Os saltos do capitão, os saltos de toda a equipa, os saltos dos adeptos ao meu lado e até os meus. São os saltos, a forma mais pura de celebrar a vitória. As lágrimas de mãos dadas com os saltos e com os cânticos. O hino nacional é novamente cantado, agora com soluços das lágrimas de quem ainda não acredita que finalmente acabou, finalmente é nossa. A minha bandeira de 2004 saiu da mochila. Hasteei-a com o meu braço. Aquilo que senti que nos tivera sido roubado em 2004, agora estava connosco. Faltava isto à seleção e faltava-me isto. Faltava esta conquista desempenhar o papel da cereja no topo do bolo das conquistas deste dia. A festa prosseguiu, com música e um ambiente de exaltação desmedida em que as palavras “campeões” e “Portugal” eram alternados com o “SIM” a que Ronaldo nos habituará. As lágrimas do capitão, o desespero que sentia, comandaram não só os 11 em campo, mas também os 11 milhões que assistiam pelo mundo fora. Aí pude ver aquilo que o futebol, o desporto, despoletam nas pessoas. Quando vejo o melhor jogador de futebol do mundo, a ver um jogo com a mesma impaciência com que os adeptos vêm o jogo, vejo o quanto a queria e como poderá ter transportado essa ambição para os que nos representavam em campo. São apenas memórias desse dia, 10 de julho de 2016. É apenas o desabafo de um adepto de futebol – não o mais conhecedor da modalidade, aquele a quem muitas vezes passam ao lado as vitórias clubísticas, mas que encontra a beleza do desporto ao gritar pela seleção – e praticante amador de atletismo, que viu, no dia D, o culminar dos esforços desses dois desportos e o nome de Portugal na imprensa internacional e na boca do mundo. Este texto está longe de ser uma ode ao desporto português, mas é uma ode ao orgulho de ser português. Não escolhi ser português, mas, se tivesse tido essa oportunidade, não teria hesitado. Ser português e tirar o prefixo à palavra “impossível”.


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