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Ponteiros de Ferro


Votar: direito ou dever?

E duas portas abrem-se, recebem os demais que por aqui entram sem dar conta do número infindável de transeuntes que, assim como eles, pisa este mosaico de xadrez. Olham, observam e registam o momento; fotografando. Sem parar. Clique após clique. As duas pombas que por aqui esvoaçam tentam fugir ao calor e ao sol. Observam todos; observam tudo e ninguém parece reparar nelas. Pequenos mirones alados que em vez de navegarem por linhas férreas, flutuam no ar. Uma terceira porta é aberta - irão as outras duas abrir-se também? – e o festival de obturadores a contrair continua. Porém, se há aqueles que preferem registar a imagem digitalmente, ainda os há em igual quantidade que, absorvendo o ambiente, gravam memórias para mais tarde recordar e recontar. De par a par, os olhos dos que por aqui passam são envolvidos pelo azul impregnado nas quatro paredes que os rodeiam. Tentando decifrá-las, percorrem milímetro a milímetro os 20. 000 azulejos que os abraçam com histórias por contar. Por de cima do chão de marfim e ébano, as malas correm, alheias a tudo isto. Percorrem o seu caminho, preenchendo o local de som. E a multidão é cada vez maior. A bengala marca o ritmo de uma turista que por aqui passa. De cabelo empalidecido e com rugas cheias de história, vagueia pela estação, fotografando e apreciando o momento com um sorriso na cara. Um sorriso jovial, um sorriso de encanto e deslumbramento como o que teve, de certo, em inúmeras vivências da sua infância. E as personagens nos azulejos azuis parecem retribuir, sorrindo-lhe de volta nas suas tarefas quotidianas e romarias. Estranhos conhecem estranhos. E conhecidos durante efêmeros segundos, fotografam-se cada um à sua vez. Os restantes desviam-se, não querendo ficar registados no momento. De costas para trás e com a respiração presa, o botão de disparo é pressionado e o flash acionado. Mais uma. O ângulo é ajustado, a lente rodopia e o ritual repete-se. «Comme ça», repete uma guia inúmeras vezes numa só frase. A Florentin e Valérie são escrutinadas as histórias contadas a tinta azul. E estes vão acenando com a cabeça. Ela, de cabelo avermelhado que lhe bate pelos ombros, sorri, consciente de um passado glorioso vivido pelo país que visita. Ele, por outro lado, parece verificar cada história contada pela guia no seu pequeno livro de viagens. Em simultâneo, eis que surge um circo de animação em dose dupla. Duas pequenas gêmeas, de face rosada e grandes caracóis louros, preenchem o local de quentes gargalhadas vincadas de alegria. De mãos dadas a seus pais, rodopiam e fazem-nos rodopiar no meio da multidão. E os quatro são um só; alheios ao mar que os envolve. E nisto, o rapaz de casaco de ganga olha para o relógio que encima a entrada principal da gare. De ponteiros irrequietos como aqueles que por aqui passam, andam a uma velocidade apressada como se quisessem eles próprios apanhar o comboio. E nisto, mostra aquele que coordena a vida de qualquer ser humano, são 15:27h. O comboio de Braga está atrasado três horas e meia, avisa a voz radiofónica. Três minutos depois, eis que dá entrada o comboio procedente de Aveiro. As portas dos cinco paralelepípedos metálicos abrem-se e delas sai um rio de gente: estudantes com a capa preta a pender dos ombros afastam-se em direção à cidade Invicta; um casal de jovens aproxima-se de mãos entrelaçadas; a senhora de t-shirt vermelha, assim como a rapariga de mala azul turquesa e o rapaz de cabelo louro, vai ao telemóvel, anunciado a chegada ao destino a quem se encontra do outro da linha. O que os irá receber a todos? A Avenida dos Aliados, o cartão de boas vindas oferecido a quem aqui chega. Cá ao fundo, olhamos para a escuridão infinita; para o tubo que traz e leva estes engenhos que por aqui patinam nestas linhas de metal. Por de cima deste, esconde-se uma insígnia. «D. Carlos I», penúltimo rei de Portugal que deu permissão para o início da construção deste monumento emblemático. Nele, ninguém repara nem ninguém sabe. A correria tardia não permite paragens. O único tempo que lhes é concebido é ouvir o bip proveniente do aparelho amarelo que lhes dá permissão para ingressar na viagem. Dali, a prova de maratona dirige-se para o comboio em si. E este vai para Aveiro. De par a par, as portas abrem e fecham ao toque suave dos passageiros. Delas provém o som mais característico, o som mais estridente que percorre a atmosfera. Ainda assim, o pequeno Tiago, dentro do comboio, vai abrindo passagem àqueles que para ali querem entrar, clicando no botão interior. Os pais, com o seu olhar protetor sobre ele, mostram-se risonhos com a alegria infindável do seu rebento que, inocentemente, auxilia os demais. «Tiago, anda à mãe que o comboio vai partir.» De olhos de avelã, Tiago senta-se e dirige-se para Aveiro, no comboio das 16:05h. E este é engolido pela escuridão opaca. Dela emergem apenas as linhas de amarelo quente que invadem o chão. Desgastadas. Quantas partidas e chegadas já devem ter presenciado? Quantas lágrimas, quantos abraços, quantos beijos quentes de emoção já assistiram? Apesar disto, continuam aqui; efêmeras, exercendo o seu papel de alerta diário. E os comboios tossem e respiram, resfriando o seu interior. As portas fecham-se rapidamente e depressa as pessoas tentam alcançá-las, em vão. O bater das asas dos pombos é o único som que perpetua agora que se encontram apenas dois comboios nas seis linhas. A qualquer migalha detetada no frio chão da estação, acontece uma disputa. E esta foi ganha pelo pardal, que, surgido do nada, levou a melhor. Apesar disto, ninguém parece reparar, ninguém lhe dará os louros pela tática inteligente. E dali, esvoaça para um outro porto, para uma próxima aventura, à procura de reconhecimento. O comboio de Braga continua atrasado, quatro horas e meia. Da Campanhã chega um comboio vazio. Sete carruagens que a pouco a pouco param e se vão enchendo de vida e de histórias. Cá fora, Matilde, de cabelos acastanhados e de óculos de sol na cara, termina o seu gelado antes de entrar. O calor assim o pede. Enquanto isso, duas transeuntes, pé ante pé, dirigem-se à cidade de cravo vermelho na mão. Uma cada um. Ambas envergando o negro, percorrem o pavimento, orgulhosas da liberdade que levam nas mãos. Um símbolo eternamente gravado para a infinidade do tempo. Mas enquanto algumas coisas são eternas, o altifalante da estação relembra-nos que algumas coisas são efémeras. E o tempo escasseia como tal. Mais um comboio desliza pelas linhas paralelas. momento. De costas para trás e com a respiração presa, o botão de disparo é pressionado e o flash acionado. Mais uma. O ângulo é ajustado, a lente rodopia e o ritual repete-se. «Comme ça», repete uma guia inúmeras vezes numa só frase. A Florentin e Valérie são escrutinadas as histórias contadas a tinta azul. E estes vão acenando com a cabeça. Ela, de cabelo avermelhado que lhe bate pelos ombros, sorri, consciente de um passado glorioso vivido pelo país que visita. Ele, por outro lado, parece verificar cada história contada pela guia no seu pequeno livro de viagens. Em simultâneo, eis que surge um circo de animação em dose dupla. Duas pequenas gêmeas, de face rosada e grandes caracóis louros, preenchem o local de quentes gargalhadas vincadas de alegria. De mãos dadas a seus pais, rodopiam e fazem-nos rodopiar no meio da multidão. E os quatro são um só; alheios ao mar que os envolve. E nisto, o rapaz de casaco de ganga olha para o relógio que encima a entrada principal da gare. De ponteiros irrequietos como aqueles que por aqui passam, andam a uma velocidade apressada como se quisessem eles próprios apanhar o comboio. E nisto, mostra aquele que coordena a vida de qualquer ser humano, são 15:27h. O comboio de Braga está atrasado três horas e meia, avisa a voz radiofónica. Três minutos depois, eis que dá entrada o comboio procedente de Aveiro. As portas dos cinco paralelepípedos metálicos abrem-se e delas sai um rio de gente: estudantes com a capa preta a pender dos ombros afastam-se em direção à cidade Invicta; um casal de jovens aproxima-se de mãos entrelaçadas; a senhora de t-shirt vermelha, assim como a rapariga de mala azul turquesa e o rapaz de cabelo louro, vai ao telemóvel, anunciado a chegada ao destino a quem se encontra do outro da linha. O que os irá receber a todos? A Avenida dos Aliados, o cartão de boas vindas oferecido a quem aqui chega. Cá ao fundo, olhamos para a escuridão infinita; para o tubo que traz e leva estes engenhos que por aqui patinam nestas linhas de metal. Por de cima deste, esconde-se uma insígnia. «D. Carlos I», penúltimo rei de Portugal que deu permissão para o início da construção deste monumento emblemático. Nele, ninguém repara nem ninguém sabe. A correria tardia não permite paragens. O único tempo que lhes é concebido é ouvir o bip proveniente do aparelho amarelo que lhes dá permissão para ingressar na viagem. Dali, a prova de maratona dirige-se para o comboio em si. E este vai para Aveiro. Um dálmata entra em cena, guiado pelo seu dono. Ambos deambulam pela gare. Com a curiosidade na ponta do nariz, o melhor amigo daquele homem fareja as novidades que lhe são oferecidas. De cauda a abanar, intromete-se entre os demais, liberto e absorto de qualquer partida sentida, de qualquer mágoa e alegria presenciada naquele instante. (Tristeza, desalento? Isso existe?). E os raios de sol penetram na coberta, criando um clima acolhedor. Um edifício composto de paredes que na sua extensão se libera das mesmas e compõe um estrato suportado por colunas helenicamente decoradas. Um equilíbrio entre a máquina e a natureza, o contemporâneo e o clássico. Mais uma partida. As ligações para a plataforma deslizam em direção ao comboio e este desaparece por entre a escuridão. O dar de costas inevitável acontece e os olhares de partida inundam-se. O único barco salva-vidas é o café. É ele que garante um pequeno reconforto. Num pequeno copo vermelho, amargura e tristeza reúnem-se de forma a encontrar um consenso. «Oh mãe, mãe, mãe, eles foram-se embora, mãe!! Eles foram-se embora!!» Boquiaberto, e de olhos cor de mar colocados na gare, o pequeno Miguel puxa a manga da sua mãe. «Eles foram-se embora!!» Um momento de suspense dá-se. O quadro de partidas e chegadas é o único que poderá dar respostas. Carinhosamente agarrando a mão do seu filho, confidencia-lhe que ainda terão de esperar. De cabeça a acenar, Miguel e a mãe partem para a cidade. O sol irrompe pelas janelas da estação. Vidro a vidro, os raios de sol invadem a atmosfera, dando ênfase e brilho à magnitude dos azuis azulejos que aqui permanecem. Ninguém repara. A pressa antiartística dá-se. Absortos nos pensamentos, na pressa da vida e na efemeridade do tempo, os transeuntes voam com receio de que se lhe escape um segundo das mãos. O relógio não para; os ponteiros continuam na sua rotina. A história de Egas Moniz é exaltada com um tom orgulhoso. «O rei de Castela viu tal prostração e rendeu-se a tal ato de reverência», conta uma senhora dos seus sessenta anos ao casal de amigos que acha tudo isto novidade. E quem eram os portugueses sem o seu orgulho patriótico, sem exaltarem os seus feitos grandiosos mesmo que seculares? O comboio procedente de Braga está atrasado cinco horas, ouve-se. Os azulejos coloridos são sempre olvidados nas explicações e nos registos fotográficos. A par destes, encontram-se também os bustos em alto relevo dos criadores de toda esta composição. As fotografias terão o seu valor de apreço e de agradecimento, pense-se assim. Duas crianças de vestido branco brincam no meio do chão. Atiram-se e esperneiam entre si com gritos de felicidade que se transformam em sorrisos resplandecentemente inocente. «Vien.» Para os adultos, as quatro paredes são uma estação; para as crianças, representam uma pista de rally, um circo, um parque de diversões: uma infinidade sem fim de possibilidades. Um mar de turistas irrompe na estação de uma rajada só. De auscultador ao ouvido, percorrem rapidamente todo o perímetro, retirando de imediato as máquinas fotográficas do bolso de forma a registar o momento. Perscrutam cada singularidade do edifício, tentando absorver cada parede que os abraça e que os recebe. Escutam atentamente a sua guia de microfone colocado diante da sua boca. Em cinco minutos relatam-se os acontecimentos dos últimos (quase) cem anos. Um casal francês prostra-se diante do painel do Infante e de D. João V. Durante vários minutos ali ficam, estáticos, sem nada dizer. A conclusão não demora. O que se desvenda naquele painel estará relacionado com a fundação e conquista de Portugal, conseguida pelo Navegador. Mal sabem estes que o olhar austero de D. Henrique em pose triunfante simboliza o primeiro passo de expansão mundial. «Senhores passageiros, avisamos que o comboio suburbano CP Porto procedente de Braga encontra-se atrasado cinco horas e vinte e sete minutos. Pedimos desculpa pelo incómodo.»



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