top of page

À Minha Avó, a Minha História de Infância


Votar: direito ou dever?

Avó, vou contar-te uma história para dormires. Daquelas histórias que não aterrorizam, que entram em nós suavemente como uma brisa de primavera. O “Era uma vez” elidido não lhe retira importância, mas acresce-lhe a humanidade que escasseia no lobo mau e na bruxa do Oriente que me deste a conhecer. A história que te vou contar, avó, não te irá recompensar por todas as noites que perdeste comigo nem pode apagar-te os pesadelos. Porque, avó, essa magia é uma coisa exclusiva e intransmissível. Talvez passe apenas de avó para avó, numa espécie de cordão umbilical que restaura a esperança do mundo.

Na história que te vou contar tu és a protagonista. Não porque comeste uma maçã envenenada ou porque fugiste de uma torre fazendo uma escada do próprio cabelo, nem mesmo porque usavas um capuz vermelho, embora fosses capaz de tudo isso, saindo ilesa de tudo, com esses pozinhos mágicos que guardas contigo. Acho que Deus torna as avós tão poderosas porque não tem tempo para proteger todas as crianças…

Como vês, não tenho a tua habilidade para contar histórias; faço-o com rodeios e hesitações, porque a ti só posso contar a melhor história, a mais mágica, a que mais me remete para os dias felizes da minha infância. Talvez comece assim : Um dia, numa tarde quente e solarenga (não me lembro se era verão, porque as crianças vivem no eterno prolongamento da primavera), uma menina pequenina e a sua querida avó foram apanhar cerejas a uma das árvores da aldeia. Colheram em suas mãos as mais carnudas e escarlates, as mais doces certamente, como prometiam. (Com as pessoas nem sempre acontece o mesmo: as mais belas nem sempre têm mais açúcar no coração e, por isso, ensinaste-me que o interior delas é o grande tesouro que guardam. Pode ser recheado de ouro ou estar quase vazio – há pessoas que são tão pobres que só têm dinheiro…)

Pelas mãos da sua avó, a menina foi conhecendo as coisas naturais: os passarinhos, as flores, as cerejas, a chuva, o sol e as pessoas. Foi compreendendo a beleza dos momentos, de cada um deles, mesmo nos dias rigorosos de inverno. Observava a sua avó enquanto ela bordava e pintava, com todo o amor que punha nas mínimas coisas. Assim, a menina aprendeu a amar e a sonhar (que são duas capacidades indissociáveis, embora muitos homens não saibam).

A menina foi crescendo e no seu coração remanesceram vestígios de alma infantil, com a pureza que a sua avó lhe soprou ao ouvido (É tão bom quando os ouvidos estão ligados à alma por válvulas invisíveis!), sobraram-lhe o espanto e a maravilha de ver tudo pela primeira vez. A história não acaba aqui, porque a menina e a avó fugiram num tapete mágico para a terra do Sempre, onde os sonhos brotam como árvores no terreno fecundo das emoções.

Dormiria de novo no fundo dos teus olhos, retornaria ao compasso de espera em que a infância me abandonou, na terra do Sempre, claro, porque tu, avó, deverias ser tal como as histórias e as lembranças e, talvez por isso mesmo, eterna.



Últimas Publicações

bottom of page