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À Meia Noite em Hong Kong


Votar: direito ou dever?

Dormem as pedras da calçada portuguesa e os grilos até, dorme o sonho pousado nas areias movediças do mar. Só eu não durmo, deambulo, percorrendo todas as esquinas do ser. E dobro-as freneticamente, como o ritmo desta cidade e da urgência do mundo. Tão longe desse mundo, tão alheia às suas particularidades… são as luzes histéricas, ruidosas que vetam o meu cansaço. Não são os vícios, não é a embriaguez que dilui os pensamentos, mas a que engole a alma – o estado embriagado com que vemos tudo pela primeira vez.

Só a cidade não dorme, essa entidade de múltiplas faces que conhece coordenadas distintas mas a mesma personalidade. E o cenário cosmopolita de olhos repuxados conhece o sabor lúgubre dos pecados dos homens. O céu sem estrelas trata por “tu” as angústias e os temores dos seus conterrâneos. Sou do mundo. Só não durmo nele. Que dormir exige uma profana ausência de mim que a cidade não me permite.

Vejo nos rostos urbanos o sono que não deixa adormecer, a dureza dos arranha-céus, a subtileza das serpentes. A humanidade mora nas cidades (ou o seu êxodo já ocorreu há muito tempo?). As casas não são mais onde habita, o coração não é uno e não tem raízes.

Saudade. Não posso senti-lo em Hong-Kong, aqui, no centro do apocalipse civilizacional. Tantos abismos há na terra e nos corações dos homens… mas o peso das madrugadas é o peso dos meus olhos e dos meus ombros. E do meu queixo e das minhas pernas, cansadas de caminhar.

Olho um estranho mas ele não me olha. Analiso o seu semblante carregado e a nuvem que paira na sua cabeça. Pudera ser Blimunda e vê-lo por dentro… Talvez morresse de susto, talvez compreendesse tudo e abandonasse a esperança perene de ser imortal. Ele não dorme também, vagueia pela cidade labirinto olhando por cima do ombro, não vão os pesadelos encontrá-lo…

Tudo enorme e eu aqui tão pequena. Um ponto microscópico à escala do Universo. De repente, ocorre-me que vivemos todos num tubo de ensaio. E todas as cidades do mundo aglutinadas, o Rio de Janeiro, Lisboa, Londres, Berlim, Hong Kong, todas uma experiência de alguém que nos olha sadicamente. Queria dormir e não posso. Apoquentam-me estes pensamentos de meia-noite entorpecida. Peço aos deuses que calem as vozes que gritam e apaguem os candeeiros e sinais luminosos. Eu quero voltar para o hotel e fechar os olhos. O estranho também quer. E isso torna-o invariavelmente mais familiar.


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